My Mazamet

Life at № 42 by E.M. Coutinho

Tradução: Um Menino A Ser Sacrificado

Abdellah Taïa para o New York Times

Paris, 24 de Março de 2012

No marrocos da década de 1980, onde a homossexualidade evidentemente ‘não existia‘, eu era um pequeno menino afeminado, um menino a ser sacrificado, um corpo humilhado que levava em si toda a hipocrisia da sociedade, tudo aquilo que não se dizia. Aos dez anos de idade, apesar de que ninguém falava abertamente do assunto, eu já sabia o que acontecia com meninos como eu na nossa sociedade empobrecida; éramos designados como vítimas, para ser usados, com a benção de todos, como objetos sexuais fáceis por homens frustrados. E eu sabia que ninguém me salvaria – nem os meus pais, que certamente me amavam. Para eles também eu era uma vergonha, uma imundície. Um zamel*.
(*palavra usada em Marrocos equivalente a viado no Brasil ou faggot em Inglês).

Como todos os outros, eles também me empurravam a viver em um silêncio terrível e definitivo, a morrer um pouco mais a cada dia.
Como é que uma criança que ama seus pais, os seus muitos irmãos, a sua cultura de classe trabalhadora, sua religião – o Islã – como é possível para ela sobreviver a esse trauma? Ser ferido e assediado por causa de algo que outros viam em mim – algo no modo como movia as minhas mãos, minhas inflexões. Uma maneira de andar, meu porte. A minha intimidade fácil com as mulheres, com a minha mãe e muitas irmãs. Por tudo isso, ser categorizado como candidato à vitimização, como aqueles meninos “Emo” com cabelos longos e calças jeans apertadas que recentemente estão sendo assassinados nas ruas do Iraque, os seus crânios esmagados.
A verdade é que não sei como sobrevivi. O que me restou foi o gosto pelo silêncio. E o sonho, nunca realizado, de que alguém me salvaria. Agora tenho 38 anos e posso declarar sem bravatas: ninguém me salvou.
Eu não lembro mais da criança, do adolescente, que fui. Eu sei que era efeminado e ciente de que ser daquela maneira era errado. Deus não me amava. Eu me desviei do caminho certo. Ou ao menos era o que me faziam entender. Não só a minha família, mas também todo o bairro. E eu aprendi minha lição perfeitamente. Então, lá no fundo, tenho que dizer a mim mesmo que eles ganharam. Foi isso o que aconteceu.
Eu não tinha nem 12 anos de idade quando, no bairro onde vivia, começaram a me chamar de menininha. Inclusive aqueles com quem eu insistia em jogar futebol usavam esse apelido, esse insulto. Mesmo os adolescentes que uma vez ou outra participaram comigo em jogos de descoberta sexual, até eles me chamavam assim. Eu já não era uma criança. Meu corpo estava mudando, espichando, tornando-se o corpo de um homem. Mas outros não me viam como um homem. O meu reflexo no espelho dos olhos dos que me cercavam era estranho e incompreensível. As tentativas de estupro e abuso se multiplicaram.
Eu sabia que não era bom ser como eu era. Mas fazer o quê? Mudar? Falar com a minha mãe, com o meu irmão mais velho? E dizer o que exatamente?
Aconteceu em uma noite de verão de 1985. Uma noite de calor intenso. Todos estavamos tentando adormecer em vão. Eu também acordado no chão onde dormia ao lado das minhas irmãs, minha mãe também perto. De repente, ouvimos vozes conhecidas de homens embriagados vindo da rua. Todos ouvimos. Toda a família. Todo o bairro. O mundo inteiro. Esses homens, a quem todos conhecíamos muito bem, gritavam: “Abdellah, menina, desce. Desça. Acorde e desça. Todos nós queremos você. Desça, Abdellah. Não tenha medo. Não vamos te machucar. Só queremos transar com você “.
Continuaram gritando por muito tempo. Meu apelido. Seu desejo. Seu crime. Eles disseram tudo o que não se dizia no mundo silencioso, muito respeitoso, onde vivíamos. Mas naqueles tempos, eu estava longe de qualquer análise racional, longe de entender que o problema não era eu. Simplesmente sentí medo. Muito medo. E naquela noite esperei que meu irmão mais velho, meu herói, se levantasse e respondesse. Esperei que ele me protegesse, ao menos com palavras. Não queria que ele brigasse fisicamente com eles – não. Tudo o que eu queria era que ele dissesse umas pequenas palavras: “Vão embora! Deixem meu irmão em paz.”
Mas meu irmão, o monarca absoluto da nossa família, não fez nada. Todos viraram as costas para mim. Todos me mataram naquela noite. Não sei onde encontrei a força, mas não chorei. Eu apertei meus olhos um pouco mais forte. E com o mesmo movimento, se fechou tudo mais que havia em mim. Tudo. Nunca fui o mesmo Abdellah Taïa depois daquela noite. Para me salvar, me matei. Foi o que fiz.
Comecei a manter a minha cabeça baixa o tempo inteiro. Cortei todos os laços com as crianças do bairro. Alterei meu comportamento. Tudo sob controle: terminaram-se os gestos femininos, a voz doce, o tempo passado em companhia de mulheres. Tudo acabado. Tive que inventar um novo Abdellah. Embarquei na tarefa com grande determinação, ciente de que este mundo não era mais o meu mundo. Mais cedo ou mais tarde, eu deixaria isso para trás. Eu cresceria e encontraria liberdade em outro lugar. Mas, no meio tempo, me tornaria uma pessoa dura. Muito dura.
HOJE sinto nostalgia pelo pequeno Abdellah um pouco afeminado. Ele e eu compartilhamos um corpo, mas já não lembro mais dele. Ele era inocência. Agora eu sou apenas intelecto. Ele era ingênuo. Eu sou inteligente. Ele era espontâneo. Eu estou preso em uma constante luta comigo mesmo.
Em 2006, sete anos depois de me mudar para a França, e depois que o meu segundo livro, “Le rouge du tarbouche”, foi publicado em Marrocos, declarei a minha homosexualidade para a imprensa Marroquina, em árabe e francês. Escândalo e apoio. Então, diante do silêncio do meu irmão e das lágrimas da minha mãe no telefone, publiquei na TelQuel, a muito valente revista marroquina, uma carta aberta chamada “Homossexualidade explicada para minha mãe”. Minha mãe morreu no ano seguinte.
Não sei onde encontrei a coragem de me tornar escritor e usar meus livros para impor minha homossexualidade no mundo da minha juventude. Para fazer justiça ao pequeno Abdellah. Para nunca esquecer o trauma que ele e todos os homossexuais árabes como ele sofreram.
Agora, mais de um ano depois da primavera árabe, devemos lembrar novamente os homossexuais. Os árabes finalmente tomaram consciência de que eles precisam inventar um novo indivíduo árabe livre, sem o apoio de seus líderes megalomaníacos. Os homossexuais árabes também participam dessa revolução, vivam no Egito, no Iraque ou em Marrocos. Eles também são parte desse processo desesperadamente necessário de libertação política e individual. E o mundo deve apoiá-los e protegê-los.”

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26 comments on “Tradução: Um Menino A Ser Sacrificado

  1. acflory
    January 3, 2018

    Um…that was interesting…en Anglais por favor?

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  2. karenjane
    January 3, 2018

    Words fail me…I just feel an enormous sadness for the suffering of this man, both then and now, and of others affected by such appalling treatment.

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    • The Pink Agendist
      January 3, 2018

      Indeed. It’s a particularly horrid problem in the developing world. In Brazil an LGBT person is murdered every 22 hours. That’s a lot to do with the dehumanisation he talks about in the article.

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  3. john zande
    January 3, 2018

    You’re writing Portuguese?

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  4. Sirius Bizinus
    January 3, 2018

    This article reminds me of the fact that in order to do truly horrible things to people, one must dehumanize them. It might be a fundamental law of morality to say that if dehumanizing someone is a necessary part of doing a thing, that thing is inherently amoral.

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    • The Pink Agendist
      January 3, 2018

      Absolutely!

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    • Anony Mole
      January 4, 2018

      Excellent point.
      So, the corollary to this would be, to turn people from committing such atrocities, we must ensure that we rehumanize their victims — in the perpetrators minds. Bring out the humanness of those they attempt to persecute. Perhaps their victims are artists… how can they vow to harm someone who can create art in its many manifestations? If they insist then they themselves must be inhuman.

      (I ran the text through Google Translate, 5000 character at a time.)

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      • The Pink Agendist
        January 4, 2018

        There’s a link to the English version in the comments! 😀

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  5. theoccasionalman
    January 22, 2018

    Meu coracao se doi por ele. “Mas fazer o que?” se reverbera por toda a minha vida.

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This entry was posted on January 3, 2018 by in life.